No mês passado participámos no ciclo de tertúlias ‘A Cidade convida ao diálogo’ que o Orçamento Participativo da Câmara Municipal de Lisboa promoveu: o tema foi ‘Qual a contribuição da tecnologia no exercício da democracia’ e a discussão foi interessante, pois toca numa das questões que mais têm ocupado a 4Change na área de projectos de cidadania e participação.
Este foco interno tem permitido investigação-ação na área do envolvimento de jovens cidadãos, da educação para a cidadania global e do uso de ferramentas da literacia para os média e novas literacias – que mais não são mais que abordagens mais holísticas de uma literacia democrática. Holísticas aqui incluem o uso de ferramentas, analógicas (como as metodologias não-formais e participativas) ou as digitais (como a produção audiovisual), que permitem incentivar a participação dos cidadãos na vida, na comunidade, no mundo.
No debate, a 4Change começou por apontar que as TIC, as possibilidades da Inteligência Artificial e dos média digitais neste ecossistema globalizado implicam não perder de vista o elemento humano e o analógico para uma democracia 2.0 (ou 3, 4, 5.0): não implicam apenas o domínio de tecnologias que as novas gerações facilmente alcançam mas aprender novas literacias e linguagens – como a da imagem vídeo ou da produção dos média digitais, ao papel dos média nas nossas vidas quotidianas. Para isso, novas ferramentas essenciais não são a app de nova geração ou a gamificação de tudo, mas saber descodificar o ecossistema mediático em que vivemos imerso, o tsunami de informação em que vivemos. Nesse sentido, uma educação para a cidadania tem de ser global, neste mundo em que tudo cada vez mais é ligado, esquadrinhado, revolvido.
Exemplo disso é o apontado por Nanjala Nyabola no livro ‘Digital Democracy, Analogue Politics’: ‘A hashtag is no more a movement than a pencil was prior to the digital age; an online movement without an offline component can often stop at just noise’ / ou como um hashtag não é um movimento social, não mais que um lápis: um movimento online sem uma expressão analógica pode resumir-se apenas a… barulho! Acreditamos nesta ideia e somos parceiros do piloto apoiado pela Fundação Bosch que investiga o potencial de comunidades online para se tornarem iniciativas cívicas – e vice-versa, procurando os factores de sucesso com estudos de caso nacionais.
As ‘fake news’ (bem classificadas pela ERC como desinformação, as ‘no news’) não são para Najala Nyabola mais do que sintomas de um ecossistema político populista que cada vez mais parece assenta nos mecanismos do rumor, do boato, da fraqueza humana. É o digital a ser usado para nivelar por baixo, esquecendo as potencialidades de aproximação, diálogo e participação que podem trazer. À pergunta na tertúlia OP sobre se ‘as novas tecnologias incentivam a participação e dispensam o elemento humano?’, Bernardo Gonçalves da MyPolis reconheceu que a educação e a intervenção humana nos processos cívicos serão sempre essenciais.
Ficamos então reduzidos a ver o elemento humano em confronto com as novas realidades da Inteligência Artificial? Aqui concordamos com a visão meio optimista e meio apocalíptica do filósofo da globalização digital Evgeni Morozov: estão a vender-nos gato por lebre ou seja, em vez das potencialidades maravilhosas que a inteligência artificial e a ciência de dados podem trazer para a transparência e eficácia das nossas democracias, vemos-nos reduzidos a consumidores! Citando a autora Shoshana Zuboff: “Steve Jobs promised us computers as ‘bicycles for the mind’; what we got instead are assembly lines for the spirit.” O problema? Os ‘Big Data’ que Morozov considera fazerem parte do património humano, estão na mão de uma meia-dúzia de empresas, os gigantes tecnológicos como a Google ou a Huawei.
Nesse sentido, João Tremoceiro do Centro Operacional Integrado de Lisboa acentuou que a Câmara espera contribuir activamente para as oportunidades lançadas pela ciência de dados ao ter iniciado a publicação dos dados públicos da cidade que o seu departamento processa. O potencial da ciência de dados e da AI vai desde a gestão mais eficiente dos recursos aos avanços na área da saúde pública.
Qual é o potencial desta situação levar a uma crise de confiança e de coesão social – uma polarização das sociedades, um agudizar da participação política nas democracias? Queremos acreditar que a chave, como sempre, está na educação e na transformação social: na abertura do sistema político dada não pela tecnologia mas pelo uso que dela faz para criar verdadeiros mecanismos de escuta do cidadão. Neste sentido, o OP de Lisboa tem de usar mecanismos de ‘facilitação’ da participação – chegar mais directamente aos cidadãos, falar dos temas que as preocupam e, muito importante, comunicar resultados, dizer: é possível, obra feita!
Aqui como no estudo de David Buckingham sobre a participação cívica dos jovens e as ferramentas digitais: não basta inventar um novo mecanismo e depois criticar os cidadãos se não participarem – é preciso que os mecanismos de democracia directa sejam efectivos, escutem a realidade dos cidadãos, apostem mais no lado humano. Desde a invenção da roda que a tecnologia nunca bastou.
(Sandra Oliveira)